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terça-feira, 15 de novembro de 2016

UMA VISÃO CRÍTICA DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA


Longe de ser um fato pontual, a instauração do novo modo de governo foi consequência de uma série de fatores. Confira como expor essa realidade aos alunos, privilegiando a visão da História como processo.

Nas clássicas representações do golpe militar que marcou o fim da Monarquia no Brasil e o início da República, a imagem do marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), erguendo seu quepe cheio de glórias, é a que prevalece. No quadro de Henrique Bernardelli (1857-1936, mostrado à esquerda), o militar é propositadamente recuperado como a figura central, o representante maior dos ideais de liberdade associados ao novo período. Esses e outros retratos da época ajudaram a disseminar uma visão parcial do episódio, apagando outros personagens que desempenharam papel relevante na mudança. Iluminar esses grupos esquecidos é o ponto de partida para apresentar uma visão crítica da proclamação da República aos estudantes. 

O ponto fundamental é esclarecer que, longe de ser um fato pontual, a instauração do novo modo de governo decorre de uma série de fatores que contribuíram para criar um cenário propício à República. Expor essa realidade aos alunos, privilegiando a visão de processo histórico, permite um entendimento mais profundo da realidade política, econômica e social da época. Com base nessa revisão histórica, o próprio papel dos militares no episódio passa a ser relativizado, uma vez que outros agentes com importante função no gradativo enfraquecimento do antigo governo são trazidos à luz. 

É possível, por exemplo, reavaliar o que de fato ocorreu no dia da proclamação. Em 14 de novembro de 1889, os republicanos fizeram circular o boato de que o governo imperial havia mandado prender Deodoro e o tenente-coronel Benjamin Constant, líder dos oficiais republicanos. O objetivo era instigar o marechal, um militar de prestígio, a comandar um golpe contra a monarquia. Deu certo: no dia 15, ele reuniu algumas tropas, que em seguida rumaram para o centro do Rio de Janeiro e depuseram os ministros de dom Pedro II. 

O imperador, que estava em Petrópolis, a 72 quilômetros do Rio de Janeiro, retornou para a capital na tentativa de formar um novo ministério. Mas, ao receber um comunicado dos golpistas informando sobre a proclamação da República e pedindo que deixasse o país, não ofereceu resistência e partiu para a Europa. Tamanho era o temor de que o Império pudesse ser restaurado que o banimento da família real durou décadas: apenas em 1921 os herdeiros diretos do imperador deposto foram finalmente autorizados a pisar em solo brasileiro.

Quatro razões para a queda da Monarquia

Abolição da escravatura Decretado em 1888, o fim da escravidão desestabilizou a agricultura de exportação, baseada no trabalho compulsório. O Império mostrou-se incapaz de responder com a agilidade necessária às novas demandas dos fazendeiros e não conseguiu garantir a estabilidade econômica. 

Influências externas 
O Brasil era o único país independente na América do Sul a manter uma monarquia - países vizinhos colonizados pela Espanha optaram pela república logo após a autonomia. O contato dos militares com a realidades nações vizinhas disseminou a ideia de um novo sistema de governo. 

Centralização política Concentrador de poderes por definição, o sistema monarquista já não era compatível com as necessidades nascidas da modernização da economia. Elites provinciais de São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, já reivindicavam, desde o início do século, certo nível de autonomia. 

Perda de apoio popular Dom Pedro II, na maior parte do tempo recolhido em Petrópolis, já não era mais uma figura querida entre as massas. Além dele, a princesa Isabel e seu marido, conde d?Eu, eram frequentemente alvo de ataques e chacotas da imprensa nacional e internacional.

Debata a criação de símbolos para sustentar a nova ordem 

Basear-se na desmistificação dessas figuras centrais no episódio da proclamação pode ser um caminho para estudar de que forma os protagonistas de determinadas passagens da história trabalham para passar uma imagem gloriosa de seus feitos. Discuta com a turma que esses relatos incluem ideologias e interesses e não podem ser encarados como fiéis ao fato. Em vez disso, é melhor vê-los como um recorte do acontecido, que precisa ser confrontado com outras fontes para que se possa compor um panorama mais próximo da realidade.
Ainda recorrendo ao exemplo da República, mostre o esforço dos grupos vitoriosos para criar e popularizar símbolos e personagens históricos que representem um novo regime. Festas cívicas, monumentos, estátuas, telas e gravuras consolidadoras das tradições nacionais são as expressões mais marcantes desse esforço - uma atitude costumeira, repetida mundo afora em inúmeras outras reformas e revoluções. 

No caso da proclamação, os governantes alteraram o nome de diversas ruas, substituindo os que tinham ligação com o Império por outros associados à República. Vias denominadas "Imperatriz" se transformaram em ruas 15 de Novembro, assim como muitos Largos da Matriz passaram a chamar-se Praça da República. Além das estátuas do marechal, figuras como a de Tiradentes, apontado como o precursor da República, foram recuperadas. É o momento de apresentar à moçada telas e gravuras clássicas e debater o que elas representam.
Uma reflexão importante surge da comparação entre os ideais da propaganda oficial e a realidade concreta. Em relação à República, é possível explorar a contradição entre um sistema que prometia trazer o povo para o centro da atividade política, mas que consolidou-se quase sem envolvimento popular nem na deposição da Monarquia nem na formação do novo governo - o que ocorreu foi uma junção de forças entre as oligarquias que davam sustentação ao Império com uma parte da nova burguesia comercial e industrial. 

A investigação sobre a relação do povo com o poder na proclamação da República pode terminar com uma comparação com os dias de hoje. De lá para cá, o que mudou? Hora de mostrar que, apesar de nosso modelo de democracia garantir a representatividade do povo por meio do voto direto e de existirem formas de o cidadão exercer algum controle sobre as esferas de poder, continuam válidas as palavras do historiador José Murilo de Carvalho: "Ainda hoje, a atitude popular perante o poder ainda oscila entre a indiferença, o pragmatismo fisiológico e a reação violenta".

FONTE: REVISTA NOVA ESCOLA, 11 de Novembro 2016  

Quer saber mais?

BIBLIOGRAFIA 
A Formação das Almas - O Imaginário da República no Brasil
, José Murilo de Carvalho, 168 págs., Ed. Companhia das Letras, 42,50 reais 
O Despertar da República, Ana Luiza Martins, 112 págs., Ed. Contexto, tel. (11) 3832-5838, 23 reais 
Os Bestializados - O Rio de Janeiro e a República Que Não Foi, José Murilo de Carvalho, 216 págs., Ed. Companhia das Letras, tel. (11) 3707-3500, 42 reais   

 

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